A segunda chance do Apache e o renascimento da fênix: uma entrevista com Garrett Saracho

O descendente de apaches e mexicanos encontrou no jazz – mais especificamente no vibrafone – a oportunidade de se expressar, influenciado por nomes como Cal Tjader, Milt Jackson, Roy Ayers e Bobby Hutcherson.

Uma das grandes dificuldades de pesquisar sobre música é o obstáculo de encontrar material físico ou evidências com fontes confiáveis de pesquisa. Desde que a música existe, seja ela em vinil, CD, fita ou streaming, existe o desafio de conseguir acesso a certos registros que se tornaram raridades.

Os motivos são diversos: às vezes o próprio artista retira o dito cujo de circulação, noutras o projeto saiu por um selo pequeno e não foi reeditado com o passar dos anos. Podemos citar exemplos clássicos como o primeiro disco do pianista e arranjador brasileiro Arthur Verocai, que, apesar de atualmente ser tratado como um dos grandes discos da história da música brasileira, foi absolutamente ignorado na época de seu lançamento, em 1972 – e só voltou à superfície graças à cultura Hip-Hop – passados mais de 50 anos de seu lançamento.

Já ouvi falar até mesmo em catástrofes que impediram grandes discos de serem distribuídos em função de enchentes que atingiram os depósitos das gravadoras, mas nunca ouvi falar num projeto que deixou de ser promovido e fabricado em função de um embargo. Quer dizer, não tinha ouvido nada que correlacionasse vinil e petróleo até conhecer a música de Garrett Saracho.

Nascido e criado em Lincoln Heights, Los Angeles, Saracho é descendente de apaches e mexicanos. Totalmente desinteressado pelo rock, encontrou no jazz – mais especificamente no vibrafone – a oportunidade de se expressar, influenciado por nomes como Cal Tjader, Milt Jackson, Roy Ayers e Bobby Hutcherson. Foi aí que o jovem começou a perambular por L.A. junto de seu inseparável comparsa, o pianista Herbie Baker. Junto de Baker, nasceu o Herbie Baker Quintet, e foi com esse quinteto que eles ganharam o prêmio Frank Sinatra, da renomada instituição UCLA, em 1970.

A banda estava voando baixo, o grupo conseguiu a atenção das gravadoras. Um cenário propício e fértil estava se desenhando para um possível contrato com um selo de peso. Eles estavam pavimentando um caminho musical interessante, mesclando elementos que caminhavam entre o jazz, música cubana, música latina e diversas outras linguagens que ainda não estavam sendo fundidas à época. Porém, passados apenas 15 dias após a cerimônia de premiação, Herbie Baker morreu num acidente de trânsito, com apenas 17 anos de idade.

Devastado pela perda de seu melhor amigo, Saracho largou a faculdade e foi para São Francisco. Depois de 3 anos afastado da música, ele voltou para Los Angeles e conseguiu convencer os executivos da IMPULSE! a assinarem um contrato para a gravação de 1 LP. O disco em questão foi En Medio, gravado (entre os dias 29 e 31 de maio de 1973) e também mixado no estúdio Village Recorder, com produção de Ed Michel, um novo grupo e um conteúdo musical no mínimo singular, formado por 5 temas angulares.

A nova banda de Saracho contava com uma variedade de músicos, com diferentes níveis de ligação com a UGMAA (Union of God’s Musicians and Artists Ascension), uma rede formada majoritariamente por músicos de jazz afro-americanos – organizada pelo pianista e arranjador Horace Tapscott – que atuava como um recurso comunitário, conectando músicos e ajudando-os a encontrar trabalho. Isso incluía Roberto Miranda, baixista do Herbie Baker Quintet e presença constante na Pan Afrikan Peoples Arkestra (PAPA) de Tapscott. Vale lembrar que Roberto tocou também com Cecil Taylor, Kenny Burrell e Charles Lloyd.

Outro instrumentista de destaque que também está escalado nesse projeto é Owen Marshall, arranjador e multi-instrumentista de Compton, que já havia trabalhado com o célebre trompetista Lee Morgan antes de realizar essa sessão. O grupo ainda conta com Saracho nas teclas, Lawrence “Patience” Higgins (saxofonista que tocou ao lado de nomes como Ray Charles e Stevie Wonder), Bruce Morgenthaler (no baixo acústico e elétrico), o já citado Roberto Miranda (baixo acústico), Jeffrey Bahir Hassan (bateria), Jamie Herndon (guitarra), Carmelo Garcia (percussão), Owen Marshall (oboé e percussão) e Marvin Pallat (violino).

O resultado é um disco que contém uma música cheia de referências e que apresenta centenas de alternativas criativas e que estavam, no mínimo, à frente de seu tempo. Intrigante desde a capa, com o retrato de Ignacio Gomez, trazendo uma minimalista versão do jovem Gary Saracho (nome creditado no disco), o vinil traz uma música que é resultado de uma característica que permeia a cena de jazz de L.A. até os dias de hoje: a miscigenação.

Esse disco é fruto do encontro de diversas pessoas e linguagens que atravessaram centenas de anos, desafiando o tempo, a migração, a escravidão, sobrevivendo a guerras e grandes massacres. É um disco intenso e quente como o sangue latino e foi um dos projetos que muito provavelmente popularizou o termo (um tanto quanto racista) “Chicano Rock”.

Lançado no outono de 1973, En Medio conquistou a atenção de DJs de jazz em todo o país. A revista DownBeat deu ao álbum a nota máxima de cinco estrelas. “O Herbie [Hancock] me ligou e falou: ‘Medio, você conseguiu! Cinco estrelas!’”, lembra Saracho. “É, mas foi você quem escreveu ‘Watermelon Man!’ E isso rendeu uma Ferrari!”, recorda-se Garrett.

Só que mesmo com uma gravação estrondosa debaixo do braço, excelentes resenhas por parte da crítica especializada e um disco lançado por um dos maiores selos de jazz de todos os tempos, En Medio foi boicotado. Tudo porque os Estados Unidos haviam declarado um embargo ao petróleo durante a Guerra Árabe-Israelense de 1973, e esse foi o catalisador negativo que impediu que um dos maiores discos de jazz que se tem notícia fosse devidamente exposto no mercado fonográfico.

É claro que essa afirmação não se sustenta, pois, mesmo que o embargo tenha acontecido, a IMPULSE! não parou de lançar discos em 1973. É só buscar no histórico que é possível encontrar diversas gravações de renomados artistas como Gato Barbieri, Pharoah Sanders, Dewey Redman (pai do Joshua Redman) e tantos outros célebres músicos que lançaram material inédito no mesmo ano. Porém, como a corda historicamente arrebenta do lado mais fraco, o LP de um novo e estreante artista foi escolhido como bode expiatório e o embargo foi usado como justificativa para limitar os orçamentos de promoção e a divulgação de novos artistas.

O que impressiona, além de um enredo dramático digno de um filme, é o conteúdo que permeia En Medio. É difícil não ficar consternado com o conteúdo que sai dos sulcos do vinil. Formado por 5 temas originais – o que já logo de cara mostra a maturidade do compositor – Garrett apresenta uma paleta de cores que alterna momentos mais hipnóticos, com uma verve intensa e que sempre explora o lado percussivo de seu piano e a riqueza rítmica do fértil contexto que ele configurou.

“Sunday’s Church” é um dos épicos do disco, faixa que mostra justamente essa habilidade que Gary possui para construir atmosferas etéreas, com ambiências sempre emolduradas pelo groove latino e que trazem uma emoção catártica que remete ao Spiritual Jazz que a própria IMPULSE! tanto promoveu na história do selo.

É muito interessante a alternância entre o baixo elétrico e o acústico. Em “Happy Sad”, Gary emula uma balada com um violino irretocável de Marvin Pallat. O desenrolar das faixas é sempre muito pungente, repleto de sentimento, mesmo nas propostas mais contemplativas. É um verdadeiro caldeirão de influências que resulta num disco que expressa urgência.

Em “Rose for a Lady”, faixa que encerra o lado A do vinil, é possível perceber a influência de Cal Tjader no piano, graças aos toques afro-caribenhos de Garrett. Mas é o lado B que consagra esse play. Aqui, o peso do groove é digno de rachar o assoalho. Guitarras com distorção, bateria e percussão coladas no embalo do Fender Rhodes e o lirismo dos metais explodem numa homenagem ao grande amigo de Gary, Herbie Baker.

Com a faixa “Senior Baker”, o compositor parece exorcizar todos os seus demônios com relação à dificuldade de superar a partida de seu parceiro musical. É difícil não se emocionar. E quando o disco termina, após a não menos apoteótica “Conquest de Mejico”, parece que surge até um vazio, porque é praticamente inacreditável que um artista que produziu uma obra deste calibre simplesmente parou de fazer música. O balanço do funk e a forma como ele utiliza o Fender Rhodes é a cereja no bolo. Swing e timbragens enérgicas, cortesia da música latina.

Depois que tudo terminou, Saracho dissolveu o grupo imediatamente e resolveu viajar. O pianista passou pela Europa e norte da África e depois de muitos anos fora do circuito, resolveu voltar para a UCLA, concluiu seus estudos com foco em cinema e se aventurou nos sets de filmagem, até voltar a gravar com a Jazz Is Dead e lançar um novo disco de inéditas em 2022.

Passados quase 50 anos, Saracho voltou a fazer música graças à série Jazz Is Dead, de Ali Shaheed e Adrian Younge. Enfim, o multi-instrumentista teve a chance de ver um lançamento acontecendo sem problemas, ainda em vida, atento para não só poder fazer algumas datas e tocar a música de En Medio, mas também gravar novas faixas com a Jazz Is Dead e relançar seu magnum opus depois de tanto tempo.

Ao escutar as reedições remasterizadas de En Medio, é difícil não pensar que finalmente a justiça está sendo feita. O conteúdo dessa gravação é realmente avançado. O uso do Rhodes, o emprego do funk no meio do turbilhão rítmico e a habilidade como compositor de Garrett não são características ordinárias.

Mesmo no disco lançado em 2022 com a Jazz Is Dead, é possível perceber como o coroa segue extremamente afiado. Tal qual em seu primeiro disco, em 1973, os músicos dessa sessão também entregam um nível de execução sólido e o resultado é mais um capítulo da força e das características únicas da música latina, que são amplificadas quando misturadas ao jazz.

A Jazz Is Dead deu uma força muito grande para que En Medio ganhe um fôlego renovado para as novas gerações, e foi bastante interessante ouvir o que o Gary tinha a dizer nesse novo contexto, passados tantos anos desde a sua primeira gravação. O conteúdo segue pungente como foi há quase 50 anos, e é claro que são gravações incomparáveis, mas o cidadão ainda é capaz de produzir música com sentimento e profundidade ritmica, sempre dando preferência para o sotaque instrumental.

Como se não bastasse, para encerrar essa história como num conto de fadas, conseguimos cavar uma conversa com o compositor de En Medio, e o resultado você confere logo abaixo.

Contracapa de “En Medio,” com o jovem Saracho à direita (foto: Wolfgang Mowrey)

Entrevista com Garrett Saracho

1. Primeiro de tudo, Garrett, é uma grande honra falar com você. Para começar, gostaria de agradecer pela sua música. Lembro da primeira vez que ouvi seu disco de 73 e do impacto que aquilo teve em mim. Depois disso, comecei a ouvir muita música com influência latina, como o grupo Azteca, por exemplo. O que você pode falar sobre a importância do movimento latino para o Jazz, considerando como ele ajudou a fundir culturas e encontrar novas possibilidades musicais?

A música latina sempre esteve em diálogo com o Jazz, desde o começo, pode-se dizer. Pense em Nova Orleans, pense no Caribe. Nos anos 40 e 50, depois da guerra, muitos americanos começaram a se familiarizar mais com a música latina e, naquela época, músicos como Cal Tjader se tornaram estrelas. Também havia o grande maestro mexico-americano Eddie Cano, que cresceu em Lincoln Heights com meu pai! Esse diálogo passou por Miles, com Sketches of Spain, por Art Blakey, Coltrane… todos os grandes. Já nos anos 60, você tem Mongo Santamaria, Airto, Sergio Mendes, Jobim — havia uma compreensão e apreciação reais entre os músicos em torno desse tipo de intercâmbio. Quando comecei a gravar, tentei contribuir com esse diálogo de uma maneira ainda pouco explorada, trazendo a cultura dos mexicanos e dos nativos americanos para o centro.

2. O que você pode falar sobre o desenvolvimento da cultura do Jazz na UCLA nos anos 60?

Naquela época era bem diferente! O programa de música da UCLA era conhecido pelo seu coral, mas o Jazz ainda não era algo que as universidades tinham assimilado de forma plena. Meus grandes professores, Lalo Schiffrin e David Raskin, ensinavam composição a partir da perspectiva do cinema. Isso era muito popular, por conta da proximidade da escola com a indústria cinematográfica. O professor Schiffrin, em particular, tinha experiência no mundo do Jazz, mas meus estudos eram mais voltados a como evocar clima e espetáculo — como numa trilha sonora. Foi uma época muito formativa para mim, mas a cultura do Jazz no campus era algo que eu ajudei a trazer! Eu tinha um ensemble com estudantes e com meu querido amigo Herbie Baker, e tocávamos com frequência nos Janss Steps e nos eventos multiculturais da universidade.

3. Garrett, como foi sua aproximação com a Pan Afrikan Peoples Arkestra do Horace Tapscott?s?

Na verdade, preciso esclarecer que minha ligação com a Arkestra foi bem limitada! Foi uma honra ter conhecido Horace Tapscott e convivido com ele algumas vezes ao longo dos anos — inclusive fui à casa dele uma vez — e sempre tive muita admiração pelos grupos e composições dele, mas meu envolvimento foi mais por meio do Herbie. Herbie tocou com ele muito mais do que eu, e o nosso grupo, o Herbie Baker Quintet, era onde fazíamos nossa própria coisa. Tocávamos em eventos ligados à Arkestra, mas não muito além disso. Todas as composições eram nossas, porque estávamos em um caminho próprio.

4. Quando vi seu nome na capa do 15º volume da Jazz Is Dead, fiquei muito ansioso para o lançamento. Como foi o processo de gravação com a banda? O uso do vibrafone e da marimba foi ritmicamente muito interessante.

Gravar aquele disco foi um sonho realizado! Um fim de semana no estúdio nunca fluiu tão bem. Eu estava nervoso por voltar a gravar, mas tudo voltou no primeiro dia: os ritmos, o sentimento, o estado mental necessário para criar.

5. Garrett, quando falamos sobre groove, como a Salsa influenciou você? Você tem um ótimo senso rítmico com essas estruturas. Acho que a importância dessa música para outras vertentes mais grooveadas é pouco valorizada.

Essa pergunta é interessante. Não posso dizer que fui influenciado por Salsa! Ouvi Jazz a vida inteira — muito Miles, muito Wayne Shorter — mas quase nunca Salsa. Acho que isso volta àquela sua pergunta sobre a música latina no Jazz. Muitos desses sons e grooves vêm de diálogos culturais que atravessam séculos. Minha participação nesse diálogo pode ter sido percebida por quem curtia Salsa na época, que estava muito em alta em Nova York, com os imigrantes de Porto Rico e República Dominicana, mas o meu som sempre foi de L.A. — das academias de boxe, do suor escorrendo no verão, de Hollywood, das luzes brilhantes, de Laurel Canyon — esse mundo de fantasia onde todo mundo se encaixa porque todos são desajustados.

6. Li em um artigo que você tocou com o Azteca nos anos 70. Como foi a experiência de tocar aquela música afrocubana com um grupo tão grande? Pergunto isso porque é um desafio construir aquele som, ritmicamente falando.

Na verdade, foi nos anos 2000! Participei de alguns shows com o Azteca no House of Blues. Clive Davis, o famoso executivo, tinha assinado com o Azteca nos anos 70 e estava presente em uma dessas noites. Durante o set, tocamos algumas músicas minhas, incluindo “Señor Baker” do En Medio. Poucos dias depois, recebo uma ligação de alguém dizendo que o Clive Davis adorou o show e estava perguntando sobre o novo material do Azteca. Acontece que ele estava falando das minhas músicas! Isso não agradou muito o pessoal do Azteca, que o meu material fosse o mais elogiado, mas guardo essa noite com muito carinho.

7. Sua música resiste à categorização. Nos dois álbuns é difícil rotular o som, e essa é justamente a beleza da coisa. Há também uma influência psicodélica ali. O que você pode dizer sobre essa característica?

Meu som é feito para não ser rotulável! Quero que os ouvintes deixem de lado suas noções pré-concebidas do que é “latino”, “jazz”, “clássico”, “psicodélico”. Eu já fui tudo isso — e também nada disso — em diferentes momentos da vida. Todos nós somos múltiplos, muito além de um rótulo. Tentar apagar essa multiplicidade seria um enorme desserviço à nossa arte.

8. Para terminar, obrigado pela oportunidade, Garrett. Gostaria de perguntar sobre os arranjos. Quais são os desafios de gravar com grupos grandes, considerando a riqueza tímbrica das suas propostas?

O único desafio é saber a hora de parar de procurar novos sons!

Por Guilherme Espir

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