Quem observa o mercado fonográfico e analisa o impacto que a gravadora Jazz Is Dead conseguiu no mercado editorial do groove pode até pensar que esse é um trabalho inédito, mas outros pioneiros da música negra norte-americana também já pensaram que conseguiriam dominar a cadeia produtiva da música, uma vez que praticamente a totalidade dos selos de jazz da época era muito resistente a lançar discos fora do espectro pasteurizado da música comercial.
A Strata Records foi uma das primeiras a desafiar essa resistência. Sediada em Detroit e fundada no final da década de 1960 pelo pianista Kenny Cox, um ex-artista da Blue Note, a Strata Records serviu como precursora da Strata-East Records de Nova York. Embora o selo tenha lançado apenas 9 discos entre 1974 e 1975, seu impacto foi profundo e duradouro. O selo 180 Proof resgatou as gravações e conseguiu reeditar os registros que incluem gravações de artistas como Larry Nozero e Lyman Woodard. Muitos desses músicos da Strata haviam participado anteriormente do coletivo Detroit Artists’ Workshop, fundado em 1964.
Vale lembrar que um artista regular do Detroit Artists’ Workshop Ensemble era o jovem pianista Stanley Cowell. Quando Moore e Cox fundaram a Strata, Cowell montou uma operação semelhante em Nova York com Charles Tolliver, criando a Strata-East.
A Strata-East Records surgiu em 1971 e causou um impacto ainda maior na cena musical da época. Fundada pelo trompetista Charles Tolliver e o pianista Stanley Cowell, a Strata-East se destacou ao longo dos anos 70, lançando mais de 50 discos e trabalhando ao lado de um panteão de artistas que conseguiram trazer uma estética totalmente focada na produção jazzística de diversos prodígios da música negra. Muitos desses artistas estavam tentando explorar a música da diáspora, mas não conseguiam encontrar um selo que os apoiasse, nem para gravar nem para lançar seus projetos.
Na Strata-East Records, músicos como Pharoah Sanders, Weldon Irvine, Brian Jackson e Gil Scott-Heron lançaram discos icônicos. E a força da música negra que resgate e enaltece suas raízes africanas reverbera no contexto da Jazz Is Dead. Mas, novamente, não foram apenas esses selos que alimentaram a gênese da ideia do Adrian Younge e do Ali Shaheed Muhammad.
A Black Jazz Records, que surgiu das mãos do pianista Gene Russell em 1969, foi um marco nessa resistência e renovação da música negra. Entre 1971 e 1975, o selo foi responsável por lançar 21 discos de alguns dos maiores artistas negros do período, como Doug Carn, Jean Carn, Cleveland Eaton, Calvin Keys, Walter Bishop Jr., Kellee Patterson, entre outros artistas lendários.
Toda essa linhagem influenciou a verve criativa da dupla por trás não apenas do conceito sonoro (que acontece no QG da Linear Labs), mas também do braço de produção que montou um elenco de artistas estelar e uma filosofia de trabalho que vai expande ainda mais a ideia dos seus antescessores. Além de dominar e compreender todas as etapas da cadeia de processo produtivo, A Jazz Is Dead ainda promove turnês para colocar esse elenco para rodar no eixo dos Estados Unidos e até mesmo outros países da Europa e América do Sul, como, por exemplo, o nosso Brasil brasileiro, que receberá shows da lenda da música africana, o ganês Ebo Taylor, em junho de 2025. Tudo graças ao projeto visionário do senhor Adrian e o mano Ali.
E já que estamos traçacando uma linha evolutiva desses selos e movimentos, vale a pena destacar a importância da Tribe Records, fundada pelos instrumentistas Wendell Harrison e Phil Ranelin. A Tribe foi um coletivo de músicos de jazz que conseguiu financiar e distribuir sua música por meio de seu próprio selo, o Tribe Records, aliás, só nessa passagem já dá pra entender de onde saiu o nome A Tribe Called Quest, diz aí? Porém, além da parte musical, a Tribe também se diferenciou das outras gravadoras negras que surgiram antes, justamente por produzir uma série de revistas que promoviam a música do selo e de outros artistas com pensamento semelhante.
Essa parte é fundamental na hora de contar essa história, pois eles entenderam que, mesmo com um estúdio para gravar e um selo para lançar os discos, ainda seria difícil conseguir a atenção dos jornalistas brancos que seriam responsáveis pelas resenhas. O problema é que a crítica não dava espaço para nenhuma dessas gravadoras menores. Por isso, a Tribe trouxe um pilar editorial para conseguir falar de sua própria música, sempre pensando no coletivo e no povo preto.
A Tribe foi a ponte entre a vanguarda do jazz e o cenário pós-Motown, que serviu como uma panela de pressão para o selo nascer. O saxofonista Wendell Harrison, por exemplo, trabalhou com Marvin Gaye e Aretha Franklin antes de se mudar para Nova York no final dos anos 1960 para tocar com Sun Ra, Grant Green e Hank Crawford. Seu retorno a Detroit, em 1971, levou à formação da Tribe. Phil Ranelin atuou localmente em Detroit, mas, assim como Wendell, também gravou com artistas consagrados, como Stevie Wonder, por exemplo. Depois da Tribe, Phil trabalhou ao lado de um dos maiores nomes do trompete no período, nada mais nada menos que o mestre Freddie Hubbard.
Mais do que uma gravadora ou uma publicação, a Tribe foi uma resposta à marginalização dos músicos negros e à falta de representatividade na indústria fonográfica. Com sua abordagem colaborativa, o coletivo lançou discos que narravam histórias de luta e reistência, ajudando a dar visibilidade a artistas de jazz, R&B e blues. Além disso, a Tribe Magazine se tornou um espaço essencial para discutir questões sociais e econômicas que afetavam a comunidade negra de Detroit, conectando-se a um público mais amplo nos EUA e no exterior.
Décadas depois, o impacto da Tribe segue latente. Com relançamentos de suas gravações por selos europeus e japoneses, o coletivo continua a ser redescoberto por novas gerações. No Japão, por exemplo, gravadoras como P-Vine e Ultra Vibe têm relançado suas obras, e a recente colaboração com o projeto Jazz Is Dead reforça sua relevância no cenário musical atual.
E graças ao advento da Jazz Is Dead, foi possível aproveitar a gravação do disco conjunto de Phil Ranelin e Wendell Harrison para fazer uma entrevista histórica com uma das mentes criativas por trás desse selo de contribuição inenarrável. Conseguimos falar com Wendell Harrison para entender e poder contar um pouquinho dessa história toda com mais precisão e riqueza de detalhes. Nesta entrevista, exploramos a história da Tribe, sua conexão com a cena musical de Detroit, os desafios e conquistas ao longo dos anos, e o impacto contínuo de seu legado na música e na cultura negra.

Entrevista
1. O que motivou a criação do coletivo Tribe?
O coletivo Tribe foi iniciado e fundado nos anos 1970, após o movimento dos direitos civis na década de 1960. As questões dos direitos civis da população negra ainda não haviam sido resolvidas. Os negros que retornavam do serviço militar não conseguiam encontrar empregos decentes nem obter respeito como cidadãos americanos. Eu, Phil e outros artistas do Tribe éramos da comunidade urbana tentando sobreviver. Tivemos sucesso em gravar músicas que contavam histórias de lutas e sobrevivência, além de iluminar heróis negros de nossa cultura.
2. Como a Tribe Magazine contribuiu para a cultura negra e a cena musical?
A Tribe Magazine refletia histórias negras e a cultura negra, graças ao talento extraordinário de escritores, artistas gráficos, fotógrafos e colaboradores locais e nacionais. Esse grupo de profissionais tinha uma forte conexão com o jazz, o R&B e o blues, e conhecia todos os artistas do Tribe. Eles viviam na área urbana de Detroit e podiam escrever sobre todas as questões da vida negra. Os músicos se apresentavam localmente, mas também viajavam nacional e internacionalmente com artistas mundialmente renomados.
3. Como você desenvolveu sua trajetória musical e sua relação com os instrumentos?
Aprendi a tocar Be Bop Jazz no saxofone. O Be Bop era um estilo de jazz emocionante e popular. Esse foi o meu alicerce musical e me permitiu tocar com muitos artistas de jazz internacionalmente conhecidos em Nova York, Califórnia e Detroit. Em 1980, voltei a tocar clarinete depois de um intervalo de 25 anos, desde o ensino médio. Além disso, expandi meu repertório para flauta e saxofone soprano. Esses instrumentos me permitiram explorar diferentes estilos ao longo dos anos 80. Nos anos 90, passei a me concentrar exclusivamente no clarinete e no saxofone tenor, além de adquirir um clarinete baixo, que toco ocasionalmente. Recentemente, tenho me dedicado bastante ao clarinete e ao clarinete baixo. Na gravação de Jazz is Dead, estou tocando muito clarinete baixo e saxofone tenor.
4. Como surgiu a Tribe Magazine e qual foi o seu impacto?
Minha primeira esposa, Patricia Martin-Harrison, cofundou a publicação da Tribe Magazine. A revista começou como um programa impresso para arrecadar fundos para concertos no Detroit Institute of the Arts, em 1971. Recebemos um grande apoio da comunidade para conseguir anúncios e promoção, o que foi um sucesso. O programa financiou quatro produções de concertos, chamando a atenção de Herb Boyd, jornalista e professor de estudos afro-americanos na Wayne State University. Ele sugeriu que transformássemos o programa em uma revista que abordasse as questões e necessidades da comunidade negra de Detroit, aproveitando todo o suporte publicitário que estávamos recebendo. Então, organizamos uma equipe de escritores, designers gráficos e fotógrafos. Minha esposa, Patricia, era fotógrafa e também responsável pelo design e layout da revista, que se tornou a Tribe Magazine. O conteúdo e as histórias abordavam as condições sociais e econômicas da comunidade negra de Detroit, que eram semelhantes às de outras comunidades minoritárias nos EUA. Além disso, a Tribe Magazine também focava em artistas de jazz e outros gêneros musicais, como R&B e blues.
5. Como tem sido a recepção do Tribe desde os anos 2000?
Desde o ano 2000, o Tribe tem recebido grande exposição por gravadoras da Europa Ocidental, como Soul Jazz Records, Pure Pleasure Records, Clap City Records, Tidal Wave Records, ENJA Records, entre outras, que licenciaram nossa música e a promoveram com sucesso. Em 2009, a banda Tribe se apresentou em Paris em um festival, mas ainda não conseguimos um agente para organizar uma turnê. Esperamos que isso mude com nossas gravações e o crescimento do nosso engajamento nas redes sociais. No Japão, o Tribe tem contratos com duas gravadoras, P-Vine e Ultra Vibe, que têm licenciado nossa música. No ano passado, pela primeira vez, a P-Vine Records licenciou 17 edições da Tribe Magazine, além de todos os lançamentos da Tribe Records, WenHa e Rebirth Records.

A história da Tribe Records é muito bonita quando observamos a paixão e a potência dos registros que foram lançados, porém existe um lado muito triste e excludente dessa história também. Um lado que inviabilizou muitos projetos musicais e que mostra como o povo preto precisou fazer o corre dobrado pra conseguir o mínimo, que era lançar e promover a música que ecoava na mente e na história de seu povo.
A Strata-Eeast, Strata Records, Black Jazz Records, e a própria Tribe pavimentaram o caminho para que hoje a Jazz Is Dead conseguisse um nível de exposição e de projeção contundente no mercado. No entanto, é praticamente impossível de conseguir imaginar o que esses selos teriam produzido caso possuíssem o mínimo de apoio. É por isso que todos esses discos são todos muito especiais e causaram tanto impacto, pois foram pensados, gravados e lançados como se a vida desses artistas dependesse disso. É um som forte demais pra ser ignorado e a prova disso é que esses discos não conseguiram ser abafados nem mesmo pela mão invisível do mercado.
Por Guilherme Espir